"Adventures
in Genius"
Grandes
Poetas
Em
1931 a Garden City Publishing de Nova York lançou Great
Men of Literature, "Adventures in Genius",
obra de Will Durant (5 de Novembro, 1885 - 7 de Novembro,
1981), filósofo, historiador e escritor norte-americano,
considerado um dos mais expressivos teóricos do século
XX. Nesse livro, ele relaciona os dez maiores pensadores,
os dez maiores poetas e os cem melhores livros para formação.
A
seguir os dez maiores poetas, tradução Monteiro
Lobato:
1.
Homero
Muitos
anos atrás, na Rússia, tive ensejo de observar
a origem da poesia. Tínhamos resolvido estudar os russo
em seu ambiente, e fiquei por uma semana no "isba"
da família de nosso guia, em Chernigov. No primeiro
dia os habitantes da aldeia nos olharam com desconfiança;
alguém lhes havia dito que éramos ladrões
de crianças. Mas no segundo dia juntaram-se, à
noite, á frente da nossa casa para uma sessão
de música e dança ao ar livre; e, sentados em
bancos ou na relva, ouvimos um velho cebo barbudo cantar ao
acompanhamento de sua "balalaica", coisa do folclore
local. Era uma narrativa queixosa, sempre finalizando num
tom menor que provocava a continuação do relato,
como um alentado volante cujo ímpeto do movimento repetido
basta para fazê-lo dar outra volta. Ao contemplar aquilo
tive a sensação de Homero a cantar para os gregos
a queda de Tróia.

ILIAD -
HOMER, THE
Desta
maneira simples e musical, com o ritmo a ajudar a memória,
o homem transmitiu e ornamentou a sua história antes
de aparecer no mundo a escrita. Nos dias dos deuses a história
tinha sublimidade bastante para merecer as honras de poesia;
a história do amor e da guerra, refulgente com a celestial
co-participação das divindades, reuniu as narrativas
de muitos bardos ambulantes na épica que conhecemos
como a Ilíada e a Odisséia. "Homero"
foi provavelmente um dos rapsodos que cantaram esses versos
comemorativos, demos o seu nome a todos os poetas que compuseram
tais cantos porque gostamos da unidade e desadoramos a fragmentação
da verdade. A literatura de cada nação começa
com épicos assim - "vedas" ou "sagas":
Ramayanas, Mahabaratas, Niebelungenlieds, Beowulfs ou Canções
de Rolando; são tão naturais para uma nação
como é uma infância para o indíviduo;
tomam o lugar daquelas histórias patrióticas
nas quais nosso país está sempre com o direito,
vence todas as guerras e é sobretudo o bem-amado de
Deus.
Parece
sem importância que os contos de Homero não representem
a verdade, que seus homens e mulheres - bem como suas deidades
- sejam aparentemente criaturas de sua fogosa imaginação:
tudo está tão bem inventado e tão vivamente
contado, que se a verdade o não aprova tanto pior para
ela. A beleza tem tantos direitos quanto a verdade: e a Ilíada
é muito mais importante do que a guerra troiana. Admitamos
que não passe Helena de um nome, ou de uma inspiração
diplomática e que o objetivo real da guerra foi por
parte dos gregos a conquista de um porto estratégico,
não obstante, sete Tróias jazem soterradas enquanto
Helena é um imortal sinônimo da beleza. Poderoso
bastante para lançar cem mil livros sobre o maior dos
oceanos - a tinta.

Trojan
War
Também
não importa que esses antigos épicos não
sejam complicados em arte ou pensamento: eram dirigidos aos
ouvidos, não aos cérebros. Eram dirigidos ao
povo, não à elite. Tinham de ser compreendidos
à proporção que recitados.
Hoje
levamos vida intricada e freqüentemente introversa, vida
para a qual a ação, como a compreendiam os gregos,
é uma exceção. Vida baseada na imprensa
e coletada de longe: o homem é hoje um animal que pará
e pensa. Por isso a nossa literatura tornou-se analítica
de motivos e pensamentos: é nos conflitos mentais que
encontramos as mais terríveis guerras e as mais negras
tragédias. Mas no tempo de Homero a vida era ação.
E Homero era o profeta da ação. Seus versos
e estilo são ditados pela ação: através
de turbulentos hexâmetros a história flui com
impetuosa corrente: de modo que (depois de aprendermos a genealogia
dos deuses e heróis) somos agarrados pelo poema como
por um Niagara.

2.
Davi
Assim,
é Homero a minha primeira escolha; mas não me
atrevo a prosseguir antes de enfrentar a inevitável
pergunta: "Qual vosso critério para definir a
grandeza de um poeta?" Penoso dilema! Porque se adoto
algum teste objetivo, independente de meu gosto pessoal, perco
o ímpeto da aventura e suprêsa que pode advir
duma alegre rendição ao gosto pessoal. E o único
teste objetivo é a fama ou a influência; este
critério, aceitável na escolha dos grandes pensadores,
já o não é em se tratando de poetas.
Como pensar na classificação de poetas contemporâneos
de acordo com sua fama ou influência? Quem indicaria
o amável e melodioso Longfellow como o nosso maior
poeta unicamente porque maior número de pessoas o ouvem
com maior prazer do que ás heresias de Whitman? Não;
não pretendo aqui revelar meus preconceitos, escolhendo
nome que, mais que outros, me têm elevado pela música,
pela emoção, pelo imaginoso ou, em suma, pela
poesia.
E
assim sendo apresso-me a colocar o nome de "O Salmista"
logo após ao de Homero. Quem foi ele não o sabemos,
exceto que não foi Davi. Davi não passava de
um fascinante bandido que enriqueceu pela pilhagem, usurpou
o trono de Saul, raptou a mulher do próximo, infrigiu
todos os mandamentos e acabou honrado pelos pósteros
como o piedoso autor dos Salmos. Esses "Cantos de Louvor",
pórem, haviam sido compostos por muitos, menos por
ele, acumularam-se durante séculos no Templo de Jerusalém
e foram consolidados cento e cinqüenta anos antes de
Cristo, ou um milênio depois da morte de Davi.
Mas
não importa quem os escreveu, nem quando surgiram;
basta que existam como a mais profunda lírica de todas
as literaturas, tão plenos de êxtase que ainda
os inimigos de todos os dogmas sentem na alma a estranha impressão
de sua música. É verdade que são muito
lamuriosos; que antecipam o espanto de Jó ante ao sofrimento
do justo e a prosperidade do mau; que deprecam excessivamente
a punição dos inimigos; que ora bajulam Jeová
com rasteiro louvor, ora o acusam de negligência (X;
1; XLIV), e geralmente pintam o Deus dos judeus como um terribilíssimo
chefe guerreiro (XII, 3; XVIII; 8, 34, 40; LXIV, 7).

Freiras
clarissas entoando salmos
E,
no entanto, em meio desses hinos de guerra, quanta ternura
lírica de humildade e mágoa! "Para o homem,
seus dias são como a relva; como uma flor do campo,
assim ele floresce. Porque o vento passa-lhe por cima e o
leva; e o lugar que ocupou não conhecerá mais".
Nunca o sentimento religioso foi tão poderoso e belamente
expresso; com a língua que, se em inglês permanece
modelo de simplicidade, clareza e força, em hebraico
ressoa com ampla majestade; com frases de uso corrente; com
paixão imaginosa e rica, como a do Oriente. São
os cantos mais belos que existem e os de maior influência;
por dois mil anos comoveram os homens; não admira,
pois, tenham sido o consôlo dos judeus no exílio
e dos pioneiros que forjaram a América.

3.
Eurípides
E
agora, estamos na Grécia, sentados no teatro Dionísio,
promtos para ouvir Eurípides. Filas e filas de assentos
de pedra dispostos em semicírculo nas encostas do monte
em cujo cimo se ergue o Partenon. Neles se sentam trinta mil
atenienses, vestidos de túnica solta, apaixonados,
tagarelas, ricos de sentimentos e idéias - a mais fina
audiência que um poeta jamais teve. Na primeira fila,
em assentos de mármore esculpido, estão os magistrados
de Atenas e os sacerdotes do deus da tragédia. Á
frente do enorme anifteatro ergue-se um pequeno palco pavimentado
de lajes; atrás dele esconde-se a "skene",
ou a "cena". E recobrindo tudo. nada mais que o
céu e a luz do sol. Longe, na base do monte, o azul
do mar Egeu sorri.

Eruípides
Estamos
no ano 415 a.C. Atenas anda mergulhada na guerra do Peloponeso,
luta intestina travada com a ferocidade das porfias entre
irmãos. O temerário dramaturgo escolheu para
tema de sua peça outra luta, a guerra de Tróia;
e seus amigos (entre os quais Sócrates que só
vai as peça de Eurípides) murmuram que ele inverterá
Homero e mostrará a guerra troiana do ponto de vista
dos derrotados.
A
peça tem a força de Shakespeare, embora, sem
o seu alcance e a sua sutileza - mas com uma paixão
social que nos move mais que qualquer obra do drama moderno,
com exceção da morte de Lear. Eurípides
é bastante forte para, em plena guerra do Peloponeso,
falar sobre a estúpida bestialidade das matanças;
tinha a coragem de mostrar aos gregos como eram eles bárbaros
na vitória e como eram heróicos na derrota os
seus inimigos. "Eurípides, o Humano", o denunciador
da escravidão, o esclarecido defensor das mulheres,
o duvidador de todas as certezas e o amigo de todos os homens:
não admira que a mocidade grega lhe declamasse versos
nas ruas e que atenienses prisioneiros readquirissem a liberdade
por meio da recitação de cor de sua peças.
"Se estivesse certo de que os mortos conservam a consciência,
eu me enforcaria para encontrar-me com Eurípides"
- foram as palavras do dramaturgo Filemon. Eurípides
não tinha a serenidade clássica de Sófocles,
nem a severa sublimidade de Ésquilo; comparado a este
e a Sófocles lembrava Dostoievski diante do impecável
Turgueniev e do titânico Tolstói. Mas é
em Dostoievski que sentimos os segredos e os vagos anelos
do nosso coração - e é em Eurípides
que o drama grego, farto do Olimpo, desceu à terra
e carinhosamente se dedicou aos negócios humanos. "Produziram
todas as nações do mundo um dramaturgo à
altura de apresentar a Eurípides as suas chinelas?"
perguntou Goethe. Sim, um.

4
/ 5. Lucrécio
Quatro
séculos se passam, estamos agora numa velha mansão
italiana construida por um opulento ninguém de nome
Memmius, longe do tumulto de Roma. Aos fundos, o quintal,
quieto, defendido do mundo pelos muros e do sol pela árvores.
Uma linda cena nos toma os olhos: dois rapazes sentados numa
banco de mármore fronteiro a um tanque; entre ambos,
o professor, animado e afetuoso, lendo-lhes magnífico
poema. Reclinemo-nos na grama e ouçamo-lo, porque esse
professor é Lucrécio, o maior poeta e também
o maior filósofo de Roma; e o que ele lê (diz
Shotwel), é "a mais bela realização
da antiga literatura" - "De Rerum Natura",
um ensaio em verso sobre a natureza das coisas. Lucrécio
recita a apóstrofe ao amor, fonte de toda a criação:

De Rerum
Natura, Lucretius
"Tu,
Vênus, é a única senhora da natureza das
coisas e sem ti nada penetra nos divinos reinos da vida, nada
cresce em beleza e alegria... Através de todas as montanhas
e mares e rios, e fofos ninhos de aves, e planícies
relvosas, tu tocas todos os peitos com o amor, e com o fogo
do desejo aproxima os sêres para que as espécies
se perpetuem... Porque logo que a primavera irrompe os rebanhos
selvagens saltam nas pradarias felizes, e nadam nas correntezas,
todos enleados em teus amavios e tangidos de desejo."
É
um homem, este Lucrécio, evidentemente nervoso e instável;
diz a história que um filtro de amor o envenenou, deixando-o
sujeito a acessos de melancolia e delírio. Todo sensibilidade
e orgulho, tudo o magoa - um homem nascido para a serenidade
e forçado a viver no meio dos alarmes de César;
um homem com aspecto místico de santo a forjar-se no
materialismo céptico: alma solitária arrastada
à solidão pela timidez e apesar disso ansiando
por companhia e afeição. Um negro pessimista
que em tudo vê dois movimentos que se anulam - crescimento
e decadência, reprodução e destruição.
Vênus e Marte, vida e morte. Todas as formas começam
e desaparecem; unicamente os átomos, o espaço
e a lei natural subsistem; o nascimento é o prelúdio
da corrupção, e até o próprio
universo regredirá para o informe.
Está
aqui uma triste filosofia, mal calculada para dar aos homens
ânimo de enfrentar o destino; não admira que
Lucrécio se suicidasse aos quarenta e um anos (55 a.C).
O que para nós enobrece estes versos é a sinceridade
e a rude força da sua poesia. Também era rude
o latim em que foram escritos; um geração se
passaria antes que a língua se refinasse com Cícero
e Virgílio; mas a influência do grande orador
e a graça do favorito de Augusto curvam-se diantes
dos másculos hexâmetros de Lucrécio, enfibrados
de adjetivos pitorescos, de imponentes verbos e ressoantes
substantivos. Ao ouvi-lo sentimo-nos transportados ao jardim
de Epicuro onde ouvimos o riso de Demócrito - o qual
sabia o que Lucrécio ignorava: que a alegria é
mais sábia que a sabedoria.

6.
Dante
A
Europa estava atravessando a fase medieval quando a China,
sob as dinastias Tsang e Sung, "figurava à frente
da civilização" como o "mais poderoso,
o mais culto, o mais progressista e bem governado país
da terra" (Murdoch). Quão lentamente a Europa
convalescia do longo pesadelo da degeneração
romana e da invasão dos bárbaros! Mas novas
cidades surgiram afinal, e também nova riqueza e nova
poesia; da França á Pérsia, de Nijni
Novgorod a Lisboa, o comércio restaurado da alento
à literatura e à arte. Em Naishapur, Omar compõe
o seu Rubayat de desiludida alegria; em Paris, Villon subtrai
cabeças de corpos e soma verso a verso; e em Florença,
Dante encontra Beatriz e nunca mais volta a ser o mesmo.

Dante no
Exílio. Anônimo. Archivo Iconográfico
S. A., Itália.
Imagem pertencente à Corbis Image Collections.
Vêde-o
aos noves anos, numa festa, procurando ocultar-se de todos,
com vergonha de cada parte de seu corpo e de cada par de olhos
do recinto. Súbito, Beatrice Portinari surge-lhe á
frente - uma menina de oito anos, e imediatamente nasce no
coração do menino o amor - um amor em que a
carne não fala - pura devoção. "Naquele
instante o espírito da vida, que se esconde no mais
íntimo recesso do coração, começou
a vibrar com tal violência que se revelava em minhas
pulsações; e, trêmulo, eu pronunciei estas
palavras". "Esse Deus mais forte que eu virá
governar-me". Assim escreveu Dante anos mais tarde num
relato idealizado, porque nada na memória tem a suavidade
do primeiro amor.
Beatriz
entretanto deu-se a outro, e faleceu aos vinte e quatro anos,
de modo que foi possível a Dante amá-la até
o fim. Para fortalecer esse amor casou-se com Gemma Dei Donati,
teve quatro filhos e muitas brigas. E jamais pode esquecer
o rosto da que desaparecera antes que o tempo lhe apagasse
a beleza ou que a satisfação do desejo lhe embotasse
a fantasia.
Dante
mergulhou-se na política, foi derrotado e exilado,
com todos os bens confiscados. Depois de quinze anos de pobreza
e vida errante, foi-lhe sugerido que poderia reconquistar
a cidadania e reaver seus bens, se pagasse uma multa a Florença
e se submetesse a humilhante cerimônia de "oblação"
no altar, como o condenado que recebe perdão. Recusou
com orgulho dum poeta. E os suaves florentinos condenaram-no
a ser queimado vivo - caso fosse apanhado. Dante não
e deixou apanhar, mas espiritualmente sofreu a pena da fogueira:
pode mais tarde descrever o inferno porque na terra passou
por todos os círculos infernais; e se menos vivamente
pintou o Paraíso foi por falta de experiência
pessoal. Andou de cidade em cidade, perseguido e sem amigos,
muitas vêzes prestes a morrer de fome.
É
possível que o poema que começara a escrever
o salvasse do suicídio ou da loucura. Nada modifica
tanto a alma dum homem como a criação da beleza
e a busca da verdade: e se os dois objetivos se fundem como
sucedeu com Dante, sobrevém a purificação.
Como disse Nietzsche, o mundo é insuportável
a quem não o encara como espetáculo estético;
olhá-lo como motivo para um quadro é atitude
que afasta os espinhos. Assim, Dante resolveu escrever; contou
em magoada alegria como tinha vivido no inferno, como se purificara
no purgatório do sofrimento e como afinal alçara
a um céu de felicidade conduzido pelas mãos
da sabedoria e do amor. E desse modo, na idade de quarenta
e cinco anos, lançou-se à feitura da Divina
Comédia, o maior dos poemas modernos.
"No
meio do caminho da minha vida, diz ele, encontrei-me numa
floresta escura, e por Virgílio levado as portas do
Inferno, sobre elas li a terrível inscrição
- Lasciate ogni speranza voi ch´entrate!. Essas palavras
soam como um ringir de roda de tortura, um rasgar de carnes,
um ranger de dentes. Dante conta como viu todos os filósofos
reunidos no inferno e comou ouviu Francesca de Rimini narrar
o seu amor e a morte de Paolo; e conta como dessas cenas de
tormento passou com Virgílio ao purgatório,
e daí, com Beatriz a guiá-lo, se foi para o
céu. Não seria coisa medieval se não
fosse alegórica: nossa vida na terra é sempre
um inferno até que a sabedoria (Virgílio) nos
purgue dos maus desejos e o amor (Beatriz) nos erga à
felicidade e à paz.
Dante
jamais conheceu tal paz; permaneceu até o fim tôrvo
de aspecto e alma - como Giotto o pintou. Dizem os seus contemporâneos
que jamais sorriu, e dele falavam com pavor como do homem
que voltara do inferno. Alquebrado e gasto, prematuramente
velho, morreu em Ravena em 1321, aos 56 anos de idade. Setenta
e cinco anos mais tarde Florença implorou pelas cinzas
do que em vida ela tanto se esforaçara por queimar
na fogueira; mas Ravena jamais cedeu. O túmulo de Dante
ainda lá está como um dos grandes monumentos
dessa cidade semi-bizantina. Quinhentos anos depois outro
exilado, Byron, ajoelhava-se diante dele - e o compreendia.

7.
Shakespeare
"Dante
- disse Voltaire - foi um louco; e sua obra, uma monstruosidade.
Teve muitos comentadores e por isso não pode ser compreendido.
Sua reputação irá crescendo porque ninguém
mais o lê". E diz também: "Shakespeare,
que floresceu no tempo de Lope de Vega..é um bárbaro"
que compôs "monstruosas farsas e tragédias".
Os inglêses do séc. XVIII concordaram com o francês.
"Shakespeare" disse Lord Shaftesbury, "é
um espírito selvagem e grosseiro". Em 1707 um
Nahum Tate escreveu um drama denominado Othelo, dizendo que
"havia tomado o enredo de um autor sem nome". Alexandre
Pope, perguntado por que motivo Shakespeare escrevia tais
peças, respondeu "Precisamos comer". Eis
o que é a fama. Um homem nunca deve ler seus críticos
- nem ser curioso a respeito do veredicto da posteridade.

William
Shakespeare
O
mundo inteiro sabe a história de Shakespeare - como
se casou às pressas e se arrependeu demoradamente;
como fugiu para Londres, se fez ator, refez a seu modo velhas
peças, e "fez" a cidade com o desregrado
Kit Marlowe, concluindo que "todas as coisas são
melhores de caçar do que de gozar"; como esgrimiu
com agudeza contra Chapman e Ben Johnson na taverna da Sereia;
como declarou guerra aos puritanos incipientes e os desafiou
com alegria - "Pensas que por que és virtuoso
não deve mais haver petisqueiras e cerveja?";
como leu Plutarco, Froissart e Holinshed e aprendeu história
estudou Montaigne e aprendeu filosofia; como afinal, por meio
do estudo, do sofrimento e dos desastres, se tornou o Guilherme,
o Conquistador dos teatrólogos do seu tempo e passou
desde então a governar o mundo que fala inglês.
Sua
rica e ruidosa energia foi-lhe a fonte do gênio e dos
defeitos; deu-lhe a intensidade das paixões e a morte
prematura. Shakespeare não podia ir a Stratford sem
fazer pelo caminho travessuras: parava na hospedaria de Mrs.
Davenant, em Oxford (Street-ford e Ox-ford eram pontos de
passagem por água no caminho para a Irlanda), e acabou
deixando lá um jovem William Davenant, que também
foi poeta e nunca queixou-se da paternidade. Certa vez que
o rapaz corria para a Taverna, um engraçado o deteve
com um "Para onde vai?". "Ver meu padrinho
Willian Shakespeare", foi a resposta. "Meu rapaz
disse o engraçado, não invoque o nome de Deus
em vão".
Convidado
a representar peças na corte, Shakespeare aqueceu-se
por uns tempos ao calor das belas damas e dos fidalgos, e
apaixonou-se loucamente por Mary Fitton, ou outra"Dark
Lady" de outro nome. Dame Quickly e Doll Tearsheet desapareceram
de suas peças para abrir lugar à majestosa Pórcia.
Sua alma refervia de romance e comédia, e seu espírito
brincava na criação de Viola, Rosalinda e Ariel.
Mas o amor nunca se contenta; na alma ansiosa do poeta surge
uma premonição de loucura e fim. "Por Deus",
disse Byron, "eu amo, e o amor me ensina melancolia".
Por
ser assim o coração da tragédia de Shakespeare
o nadir de sua vida é que o seu mais caro amigo, "Wi
H.", a quem ele havia oferecido sonetos de amor infindo,
roubou-lhe a "Dark Lady" da sua nova paixão.
Enfurece-se o poeta e compõe sonetos sobre a loucura
e a dúvida, afunda num inferno de sofrimentos, rói
o coração e põe-no a nu no Hamlet, no
Othelo, em Macbeth, no Timon e no Lear. Ele passa de simples
comédias em que figuram tipos simples, ao jogo de complexas
personalidades; em tragédias intricadas nas malhas
do destino. Tornou-se pelo desespero o maior de todos os poetas.

King Lear:
Jonathan Hyde (Earl of Kent), Ben Meyjes (Edgar), Ian McKellen
(King Lear), Sylvester McCoy (Lear's Fool)
O
que nele mais gostamos é a loucura e a riqueza do seu
falar. Tem o estilo da vida que levava, pleno de energia,
tumulto, cor e excessos; "nada como o excesso".
Estilo às carreiras, sem fôlego; o poeta escrevia
a galope e jamais encontrou folga para arrepender-se. Nunca
emendou uma linha, nem corrigiu provas; a suposição
de que no futuro suas peças seriam antes lidas do que
representadas jamais lhe ocorreu. Descuidado do porvir, escreveu
com o fogo da paixão. Palavras, imagens, frases e idéias
lhe vinham numa inexaurível torrente - e inquieta-nos
saber de que fonte brotavam. Ele tem "um casa-da-moeda
de frases em seu cérebro". Homem nenhum dominou
tanto uma língua, nem usou-a com maior prodigalidade.
Vocábulos anglo-saxônicos, franceses, latinos,
palavras de cervejaria, palavras médicas, palavras
legais; ligeiras linhas monossilábicas e sonoros discursos
sesquipedais; eufenismo de damas e grosseiras obscenidades
idiomáticas: unicamente um escritor do tempo de Elizabeth
I ousaria jogar com semelhante língua. Temos hoje melhores
maneiras e menos força. Sim, seus enredos são
impossíveis, como notou Tolstói; os equívocos
são pueris, os erros são legião, e a
filosofia é de renúncia e desespero. Nada importa.
O que importa é que em cada página fulgure a
divina energia da alma. E isto nos faz perdoar tudo a um homem.
A vida está além da crítica - e Shakespeare
é mais vivo que a vida.

8.
Keats
Repousemos
por um instante e contemos os não mencionado. Primeiro,
Safo, a tanger a sua lira de amor num promontório da
ilha de Lesbos; depois Ésquilo e Sófocles, vencendo
o prêmio dionisíaco mais vezes que Eurípides,
o sutil Catulo, o cortesanesco Horácio, o vívido
Ovídio, o melífluo Virgílio; Petrarca
e Tasso, Omar-Fitzgerald, Chaucer e Villon. Mas isto é
pecado venial perto do pecado mortal que ainda temos que cometer
com a omissão de Milton e Goethe, chamados mas não
escolhidos; e de Burns e Blake, Byron e Tennyson, Hugo e Verlaine,
Heine e Poe. Heine, o diabo do verso; e Poe a metade melhor
da poesia; pô-los de lado parece-me imperdoável.
Tennyson, cujos cantos eram todos belos, e Byron, cuja vida
não passava de uma tragédia lírica. Pior
ainda não incluir Milton, que escreveu como príncipes,
potentados e potências, e fez o idioma inglês
relampaguear como o hebraico de Isaías. E pior que
tudo não incluir Goethe, a alma da Germânia,
que na mocidade escreveu como Heine; na maturidade como Eurípides;
e na velhice, como uma catedral gótica - confuso e
surpreendente; que alemão ou europeu, o eliminaria?
Não importa; pequemos com ousadia e em vez do filósofo
Goethe incluamos o poeta John Keats.

Miniature
of Keats, by Joseph Severn,
Keats-Shelley Museum
Derrubado
pela tuberculose em 1819, depois de semanas no leito, Keats
escreveu a Fanny Brawne: "Tive agora a oportunidade de
passar noite de ânsia, e ao despertar encontrei-me obstruído
de pensamentos. Mas tenho de morrer, digo-o a mim mesmo, eu
não deixarei nenhuma obra imortal atrás de mim
- nada que faça meus amigos se orgulharem de minha
memória; amei a beleza acima de todas as coisas, e
se tivesse tempo me faria lembrado"."Se tivesse
tempo" - eis a tragédia de todos os grandes homens.
Keats nada escreveu de importância depois disto; não
obstante, seus amigos só são relembrados pelo
que disse e atrás de si ficaram poemas tão duradouros
quanto a língua em que os vazou - e mais perfeitos
que os de Shakespeare.
Keats
deixou a Inglaterra pela Itália em busca do sol; mas
as tempestades da viagem arrasaram o corpo e o pó do
sul não lhe fez bem. Hemoptises. Pediu que as cartas
de Fanny não lhe fossem entregues: não suportaria.
Deixou de escrever a Fanny e aos amigos; só tinha uma
coisa a fazer: morrer. Tentou envenenar-se; Severn o impediu.
"A idéia da morte - escreveu Severn - parece ser
o seu único reconfôrto. Fala da morte com deleite.
Nada o horroriza mais que o pensamento de sarar". Nos
últimos dias "seu espírito cresceu em quietude
e paz". Compôs o próprio epitáfio:
"Aqui jaz alguém cujo nome está escrito
na água". No último momento pediu a Severn:
"Erga-me, estou morrendo. Acabarei calmo. Não
tenha medo. Graças a Deus a morte chega". Vinte
e três de fevereiro de 1821. Vinte e cinco anos tinha
Keats. "Se eu tivesse tempo!"

9.
Shelley
Quando
soube da morte de Keats, vítima da tuberculose e da
Quarterly Review, Shelley afundou em prolongada reclusão,
derramando sua cólera e sua dor na maior das elegias
inglêsas, Adonais. Devia ter sentido com sua
feminil sensibilidade, o quanto seu destino se aproximava
de Keats - e quão cedo também ele cairia derrotado
na guerra da poesia contra os fatos.

Shelley
bust by Moses Ezekiel with view of Trinita
dei Monti from the Keats-Shelley House
Porque
Shelley, como diria Sir Henry Maine, baseou sua vida no "estado
natural", no sonho da Idade do Ouro de Rousseau, na qual
todos os homens seriam iguais; e era fisiologicamente hostil
ao "método histórico" que equilibra
ideais com a realidade e aspirações com a história.
Shelley não podia ler a história, parecia-lhe
uma abominável enumeração de misérias
e crimes: em cada página procurava não a conduta
e as reais vicissitudes dos homens, mas a sua poesia, os seus
sentimentos, ideais e os seus desejos. Shelley conheceu a
Ésquilo melhor que a Tucídides - e em Ésquilo
não viu que Prometeu fora encadeado. Que poderia ser
mais certo que o seu sofrimento?
Era
tão sensível como a sua "Sensitive Plant",
sujeita, como ele, a rápido desaparecimento, enquanto
as mais grosseiras floriam e sobreviviam. Descreveu-se a si
próprio no Julian - "Eu, que sou como um nervo
sobre o qual se enrolam as insentidas opressões deste
mundo". Vendo esse débil rapaz que nunca chegou
a adulto, ninguém o imaginava o autor das heresias
que puseram o mundo inglês em fogo. Escreveu Trelawney
da primeira vez que o encontrou: "Será possível
que este suave rapazinho imberbe seja o verdadeiro monstro
em guerra contra o mundo inteiro?" O pintor McCready
não pode pintar-lhe o rosto porque era "belo demais"
e também muito fugidio; todo ele vibrava de alma.
Ninguém
foi de modo mais completo e exclusivo o que na realidade é
o poeta. Corporificava tudo quanto a poesia que dizer. "A
Poesia", escreveu ele na sua famosa "defesa",
"a poesia e o princípio do Eu, do qual o dinheiro
é a encarnação visível, são
o Deus e o Mammon do mundo... Mas excede a toda a imaginação
conceber qual teria sido a condição moral do
mundo se Dante, Petrarca, Boccacio, Chaucer, Shakespeare,
Calderon, Bacon ou Milton não tivessem mascido; se
uma revivescência do estudo da literatura grega não
se tivesse dado; se nenhum monumento da antiga escultura não
houvesse chegado até nós; e se a poesia da religião
dos antigos perecesse com a fé que a anima".
A
8 de julho de 1822 Shelley e seu amigo Williams deixaram a
Casa Magni, na qual estavam hospedados na ilha de Lerici,
e puseram-se ao mar no barco "Ariel", através
da baía de Spezzia, rumo a Livorno, a fim de se encontrarem
com Leigh Hunt, que insistentemente convidava Shelley para
uma estada em sua casa. O pequeno barquinho de vela chegou
sem novidades a Livorno, mas ao fazer-se de volta os céus
anunciaram tempestade. Hunt resolveu adiar a viagem para o
dia seguinte, mas Shelley insistiu no retorno a Lerici naquela
mesma hora; Mary Shelley e Mrs. Willians, que haviam ficado,
se afligiriam se seus homens não aparecessem. Logo
que o barco se pôs a vogar, os marujos encontrados pelo
caminho advertiram-lhes do perigo. Shelley não lhes
deu atenção.
Sobrevindo
a noite e não aparecendo eles na Casa Magni, Mary Shelley
pressentiu a desgraça. No maior desespero, embarcou
pra Livorno logo que a manhã rompeu. Lá encontrou
Hunt e Byron, mas nada de Willians e Shelley. Energicamente
Byron meteu-se á procura dos desaparecidos, pesquisando
a costa palmo a palmo; oito dias depois encontrou o corpo
de Willians, já irreconhecível, semi-enterrado
nas areias; e foram ainda necessários mais dois dias
para a descoberta do corpo de Shelley - ou do que dele haviam
deixado os abutres. A identificação foi feita
pelo encontro dum volume de Sófocles num dos bolsos
e um de Keats no outro.
A
lei da Toscana exigia que os corpos lançados pelas
ondas à costa fossem queimados, para previnir a pestilência.
Byron, Trelawney e Hunt colocaram o cadáver numa fogueira,
e ao vê-lo já meio consumido Trelawney retirou
o coração, que a viúva de Shelley fez
enterrar junto a Keats, no cemitério protestante de
Roma, sob uma laje com esta simples inscrição:
"Cor cordium" - o coração dos corações.
Quando 29 anos mais tarde Mary faleceu, foram encontradas
no seu exemplar de "Adonais", num invólucro
de sêda, as cinzas do amado morto, entre as páginas
sobre a imortalidade e a esperança que subsiste no
coração dos homens derrotados.

10.
Whitman
Foi
uma grande revolução na história da literatura
o aparecimento do homem que via elementos poéticos
nas cenas do drama humano, na vida fresca borbulhante em seu
redor; que encontrou meios de pôr em cantos o espírito
dos pioneiros, e achava mais poesia sob as estrelas do que
em todos os salões do artificialismo. Pela primeira
vez um poeta encontrava no viver do homem comum temas dignos
de nobres versos: levantava o povo até à literatura
e lançava a Declaração dos Direitos do
Homem à Poesia. Trocava os vagos idílios de
Arthur ou outro mito de deuses mortos, pela rudeza do seu
país, pela sua duvidosa democracia, pelos seus tempos
de evolução tumultuada. O que faz Homero para
a Grécia, Virgílio para Roma, Dante para a Itália,
Shakespeare para a Inglaterra, iria fazer Whitman para a América
- porque ousou enfitá-la e no novo continente descobrir
material para os seus cantos. E construiu para a América
nova vida e nova forma de versos, soltos, irregulares, flutuantes
e fortes. E tão fielmente a viu e cantou que por fim
se tornou não só o poeta da democracia e da
América, como pela sua grandeza de alma e universalidade
de visão, o poeta do mundo moderno.

Portrait
of Walt Whitman
A
originalidade das Leaves of Grass, diz um crítico
francês "é talvez a mais absoluta ainda
manifestada em qualquer literatura". Primeiro, originalidade
nas palavras: não há ali nenhuma nuança
de língua, nenhum nevoeiro shelleyano, mas nomes e
adjetivos viris, verbos brutais, expressões tomadas
das ruas e dos campos.
("Tive
grande dificuldade em abandonar o estoque de clichês
poéticos, mas o consegui."). E depois, originalidade
de forma: nada de rimas, exceto ocasiões descaídas
como "capitão, meu capitão"; e nenhum
metro ou ritmo regular, apenas naturais da respiração
ou dos ventos do mar. E acima de tudo, originalidade de temas:
a simples admiração duma criança em face
dos prodígios da natureza ("O silencioso jacto
da aurora", "o louco embate das ondas na terra");
a vivida identificação de si próprio
com todas as almas em todas as experiências; a intrépida
sinceridade dum espírito aberto que ama e respeita
todos os credos; o franco e forte senso da carne; a fragância
das estradas em aberto; a defesa e a compreensaão da
mulher; a tendência cósmica da sua imaginação
e simpatia, aceitando todos os povos e saudando o mundo com
desrespeito de todas as tradições e preconceitos;
e até os protesto que a poesia de Whitman determinou,
provam a sua força e a sua necessidade. Toda a América
se revoltou exceto um homem o qual a redimiu com a nobreza
de um carta. A 21 de julho de 1855 Emerson escreveu a Whitman:
"Não
me sinto cego ante o valor do admirável presente que
nos fez com as Leaves of Grass. Considero-o a mais
extraordinária contribuição de sabedoria
jamais apresentada pela América. Ao ler esse livro
sinto-me verdadeiramente feliz, da grande felicidade que uma
grande coisa nos dá... Exulto ante o vosso pensamento
audacioso e livre... Saúdo-vos no começo duma
grande carreira, que deve ter tido uma sólida gênese
para exigir tal surto. Esfreguei os meus olhos com medo de
que essa aurora fosse ilusão; porque o fundo do livro
é uma sóbria certeza... Desejo conhecer o meu
presenteador; e quando minhas tarefas permitirem e for a Nova
York, irei apresentar-vos os meus respeitos." R.W.
Emerson
Whitman
já se foi. Viveu quando éramos crianças.
Mas provou que mesmo em nossa era podem aparecer gigantes;
e mesmo na América, tão jovem e grossseira ainda,
pode surgir um poeta único, digno de ombrear-se com
os grandes.

Sobre
o autor: WILL DURANT recebeu o Prêmio Pulitzer (1968)
e a Medalha da Liberdade (1977). Passou mais de cinqüenta
anos escrevendo “A História da civilização”,
onze volumes aclamados pela crítica (os últimos
escritos em colaboração com a esposa, Ariel).
Credita-se ao seu livro A História da Filosofia (1926)
o mérito de ser a obra que lançou Simon &
Schuster como importante força na área editorial,
e de ter introduzido mais pessoas ao assunto da filosofia
do que qualquer outro livro.
Fonte:
DURANT, Will (1885 -1981). Os Grandes Pensadores, Obras Filosóficas.
Companhia Editora Nacional, São Paulo, s.1, v.3, 1969
- p. 28-47
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