Pasolini
nunca foi uma unanimidade, criou um obra cheia de contradições
e, no entanto, coerente e orgânica. Foi, incontestavelmente,
um personagem decisivo da cena cultural italiana e não
apenas da cinematográfica.
Um autor
orgânico apesar de paradoxal. Em sua obra, tudo faz
sentido, do primeiro longa-metragem, Desajuste Social,
de 1961, ao último, Saló ou Os 120 Dias
de Sodoma, de 1975.
Essa constatação
tem a ver com a postura humanística e política
de Pier Paolo Pasolini, artista que hoje se chamaria de um
multimídia - era prosador, poeta, repórter,
articulista, pintor, e "também" cineasta.
Quer dizer, o cinema era um meio de expressão, entre
outros. E esse meio lhe servia para dar forma a uma posição
determinada diante do mundo. Posição de esquerda,
porém fora da esquerda oficial. Libertária do
ponto de vista sexual, provocativa em política, conservadora
na religião
Revolucionou
- e talvez tenha convulsionado - a estética e a política.
Nascido
em 1922, formado em Letras aos 20 anos, Pasolini foi roteirista
de Federico Fellini e de Mauro Bolognini. Talvez, e vai nisso
alguma provocação, o melhor filme de Pier Paolo
Pasolini tenha sido realizado por Mauro Bolognini - o magnífico
A Longa Noite de Loucuras (La Notte Brava),
de 1959,
Para Fellini
escreveu principalmente As Noites de Cabíria,
no qual seu nome divide o crédito do roteiro com o
felliniano Tulio Pinelli, mas não são poucos
os críticos que supervalorizam a contribuição
de Pasolini, vendo sua marca no episódio daquele homem
que distribui alimento aos sem-teto, na noite de Roma. Seria
o típico santo pasoliniano, mas isso seria negar que
já era santo o protagonista masculino de O Milagre,
que Fellini escreveu e interpretou para Roberto Rossellini,
anos (quase uma década) antes de Cabíria.
Além
de A Longa Noite de Loucuras, Pasolini escreveu também
O Belo Antônio e Um Dia de Enlouquecer
para Bolognini, contando a história de outro ragazzo
di vita. Seus primeiros filmes tratam obsessivamente do tema
da prostituição, masculina e feminina, e Pasolini
trata o assunto na dupla perspectiva do cristianismo e do
marxismo.
Quando
Pasolini parte para a direção, ele emerge do
neo-realismo do após-guerra mesclando temas sociais
a um cristianismo popular muito à sua feição.
Ele é um retratista de primeira da periferia romana,
como se vê em Desajuste Social (ou Accatone,
que é como todo mundo conhece seu filme de estréia),
e Mamma Roma, o segundo longa-metragem. Temos aí
a Itália plebéia, imersa na pobreza, ou mesmo
na degradação, porém digna, forte, alegre,
católica - a grande figura que é Anna Magnani
como a mater dolorosa de periferia de Mamma Roma resume
em sua personagem essas características díspares.
O catolicismo
bem particular de Pasolini aparece na maneira como interpreta
seu Evangelho Segundo São Mateus. Um Cristo
revolucionário, verdade, em nada contrário a
posições mais liberais da Igreja. A polêmica
foi intensa no arraial comunista, mas, desta vez, Pasolini
ganhou o apoio dos católicos.
Ao mesmo
tempo em que causava certa perplexidade na Igreja, ele não
descurava de sua crítica política, a mais ostensiva
delas sendo dirigida à esquerda com Gaviões
e Passarinhos, com Totò e Ninetto Davoli nos papéis
principais. Deve-se levar em conta que este filme é
de 1966, vive-se em plena guerra fria, com posições
bipolares muito bem delimitadas. O sujeito ou era de esquerda
ou de direita, convicções inconciliáveis,
com mais razão quando se é um intelectual, e
ainda por cima italiano. Pois bem, Pasolini era de esquerda,
mas flertava com um comunismo primitivo, talvez inspirado
nos primeiros cristãos.
Em Gaviões
e Passarinhos, Totò e Ninetto põem o pé
na estrada e são acompanhados por um corvo falante
que faz as vezes de intelectual de esquerda. No final, Totò,
faminto, resolve jantar o corvo. Mata a fome e livra-se da
tagarelice do "ideólogo". Era assim que Pasolini
via as relações de incompreensão entre
os sabichões e o povo, sendo ele próprio, por
paradoxo, um intelectual.
O fato
é que Pasolini queria captar o discurso do povo e não
fazer um discurso sobre o povo. Seus filmes mostram a disposição
de encontrar esse elã, essa força primitiva
que viria dos estratos populares, livre de contaminação
da cultura de elite. Forças primais, as forças
da saúde - o sexo, a fome, o riso, o prazer em todas
as suas formas, mesmo as mais escatológicas.
Com Édipo
Rei, fundiu marxismo e psicanálise e iniciou uma
discussão sobre o mito que prosseguiu em Teorema
e na sua Medéia, interpretada pela magnífica
Maria Callas. A cena pós-assassinato dos filhos, quando
ela vaga interrogando o sol e a lua, é uma rara experiência
estética. Até por ser poeta, escritor e cineasta,
Pasolini tinha de preocupar-se com a questão estética,
que não se restringia para ele ao cinema. Era atraído
pela diversidade das linguagens e se o cinema lhe interessava
mais era porque Pasolini o considerava mais próximo
do real, o verdadeiro alvo de suas pesquisas.
Nunca
deixou de provocar polêmicas, até seu brutal
assassinato, em 1975, e isso porque radicalizou, como poucos
pensadores, o discurso anticonsumista e antifascista. Teve
a intuição do que seria o mundo globalizado
e o criticou com veemência. É esse seu maior
legado. Decorridos quase 35 anos de sua morte, Pasolini continua
sendo uma dessas vozes incômodas que rompem o coro dos
conformistas.
Filmes
La
Notte Brava (1959)
Dois
jovens delinquentes romanos, Scintillone e Ruggeretto, tentam
vender armas roubadas e acabam encontrando duas prostitutas,
Anna e Supplizia, que vão ajudá-los. O filme
se constitui em um verdadeiro thriller através da noite
romana, dos night clubs à periferia, passando pelas
caçadas da prostituição. A certa altura,
a personagem Ana Laura (Priscilla Rozenbaum) dirá:
“Essa é a minha longa noite de loucuras”.
Mamma
Roma (1962)
A
prostituta Mamma Roma quer mudar de vida e de classe social,
mudanças que lhe possibilitariam recuperar sua auto-estima
e também o filho Ettore, um adolescente que vive fora
de Roma para não presenciar a vida que a mãe
leva. A decisão se dá ao casar com Carmine,
seu ex-gigolô. Mamma Roma sonha com uma vida burguesa,
em um novo quarteirão ainda em construção
na cidade, mas suas esperanças se confrontam com a
realidade. Este filme é um grande objeto de estudo
para muitos pesquisadores do cinema, pelo fato de que seus
planos e ângulações são fortemente
inspirados em afrescos de Giotto, Caravaggio e outros grandes
artistas plásticos.
Il
Vangelo Secondo Matteo (1964)
É geralmente tido como
ironia que um dos filmes mais fiéis já feitos
sobre a vida de Jesus Cristo – senão o mais fiel
– seja obra de um comunista, o italiano Pier Paolo Pasolini.
O Evangelho Segundo São Mateus é dedicado pelo
diretor ao papa João XXIII e não tem nem uma
única fala que não seja tirada tal e qual do
texto do evangelista Mateus. Ao contrário dos filmes
bíblicos que proliferavam nos anos 50 e 60, em Evangelho
não há contextualização para facilitar
a vida do espectador e, afora os figurinos, a rigor também
não há reconstituição histórica
– todas as cenas foram rodadas em locação,
nas colinas áridas e então pobres da região
italiana da Basilicata. O elenco é todo de não-atores
– entre eles a mãe de Pasolini, como Maria, e
o caminhoneiro espanhol Enrique Irazoqui, que faz Jesus e
é um dos mais bem-sucedidos exemplos do dom do diretor
para captar no rosto de seus intérpretes uma essência
que fosse alheia à atuação. A sensação,
proposital, é a de que se assiste a um documentário
sobre Jesus. E, como os grandes documentários, Evangelho
adquire por meio do real um caráter simbólico,
que é reforçado pela fotografia em preto-e-branco,
quase impressionista, de Tonino Delli Colli, e pela montagem
do excepcional Nino Baragli. Por isso, apesar de um certo
incômodo inicial causado pelo fato de as vestes dos
sacerdotes judeus que condenam Cristo lembrarem muito os paramentos
dos papas católicos – e também a despeito
de Pasolini ter sido preso dois anos antes, em 1962, por desrespeito
à Igreja –, o filme não demorou a ganhar
a chancela do Vaticano. O que seria um tanto embaraçoso
para um comunista, não fosse Pasolini o comunista em
questão.
Uccellacci
uccellini (1966)
A
estrutura de fábula está presente desde o início
do filme, a partir da música, recurso de importância
inquestionável no processo criativo de Pasolini. A
canção, que abre e fecha circularmente o filme,
tem a função de apresentá-lo, sintetizá-lo
e comentá-lo.
Os créditos
desse filme, curiosamente, são cantados; mas aparecerem
também na forma tradicional, escritos. A canção
que abre o filme, além dos dados técnicos, apresenta
um comentário sobre os intérpretes dos dois
protagonistas e, ainda, oferece uma definição
do gênero do filme. A exemplo das canções
brechtianas, um porta-voz do autor dirige-se diretamente ao
público, apresentando o espetáculo: Era uma
vez...
Além
desses, outros aspectos do teatro épico, presentes
no filme, poderiam ser apontados, como o hibridismo que o
caracteriza. De fato, Gaviões e passarinhos funde o
cômico e o dramático. Nele encontra-se a reflexão
central da vida do cineasta, reflexão que o perseguiu
durante toda a sua vida, sobre os caminhos/ descaminhos do
neocapitalismo.
Tal reflexão
espelha a séria crise de um intelectual de esquerda,
depois da derrocada dos ideais que o haviam motivado até
então, vista pelo viés de uma fina ironia, eivada
de comicidade. O próprio artista definiu a representação
dessa crise como um filme “ideocômico”,
que, entretanto, não se opõe ao prazer, ao entretenimento
pelo tom adotado, de farsa.
Teorema
(1968)
Um rico industrial, casado, com dois filhos, recebe, de repente,
a visita de um anjo, que, elemento deflagrador, provoca, com
a sua presença, uma crise familiar. O anjo, que não
se sabe de onde veio, tem relações sexuais com
todos os familiares. Estes ficam totalmente atônitos
e começam a ter comportamentos esquisitos. A mãe
(interpretada pela deusa Silvana Mangano) sai pelas ruas de
Roma à cata de homens para satisfazer suas fantasias,
com um gosto insólito pelos tipos mais rudes e grossos.
O filho vira artista abstrato numa pulsação
quase maníaca. A sua irmã, chocada, fica catatônica
enquanto o pai, desesperado, corre pelo deserto após
doar a sua fábrica aos operários. Apenas a criada
(Laura Betti) é que é salva pelo autor, pois
sai da casa onde trabalha e se dirige ao vilarejo natal, quando
levita e fica parada no firmamento. Objeto de culto e veneração.
O
anjo, interpretado por Terence Stamp, é um personagem
bem típico dos filmes cujas fábulas apontam
pelo aparecimento de um elemento deflagrador que provoca uma
crise de identidades ou um pandemônio quando se instala.
Pasolini,
numa entrevista ao jornal Jeune Cinema número 33 (outubro
de 1968), disse o seguinte: "Numa família burguesa
chega um personagem misterioso, que é o amor divino.
É a intrusão do metafísico, do autêntico,
que vem destruir, transformar uma vida inteiramente inautêntica,
mesmo que cause pena, mesmo que possa ter momentos de autenticidade
nos sentimentos".
A partitura,
deslumbrante, é do maestro Ennio Morricone. E a luz,
histórical, vem da sensibilidade de Giuseppe Ruzzolini.
Decameron
(1971)
Aos
poucos Pasolini foi caminhando para mise-en-scènes
mais elaboradas, com requintes de cenografia, locações
exóticas e curiosidades. Sua posição
política foi suavizada em troca de versões de
clássicos eróticos da literatura mundial nas
chamada Trilogia da Vida. Esta foi a primeira delas, sua versão
da obra literária "Il Decamerone", de Bocaccio,
numa versão livre, ousada, com muito humor e muita
nudez.
Pasolini
mistura atores amadores com aparições dele como
o pintor Giotto e de Silvana Mangano como a Virgem. Além
da habitual aparição do afilhado Ninetto Davoli.
Vencedor
do Urso de Prata no Festival de Berlim, O Decameron de Pasolini
fez grande sucesso em todo o mundo e provocou muitas imitações.
Foi, por muitos anos, proibido no Brasil pela censura.
Racconti
di Canterbury (1972)
Em
1972 Pasolini roteirizou e dirigiu "Os contos de Canterbury",
sua versão das famosas histórias medievais do
século XIV, de autoria do inglês Geoffrey Chaucer.
Ganhador do Leão de Ouro no Festival de Berlim daquele
ano, o filme é a segunda parte na série Trilogia
da Vida", também composta por "Decameron"
(1970) e "As mil e uma noites" (1973).
Se nos
anos de 1960, Pasolini (1922-1975) ficou bastante conhecido
por seus filmes dados por difíceis, provocativos e
políticos, como "Teorema" (1968) e "Pocilga"
(1969), a "Trilogia da Vida" é mais acessível
e vibrante, mas, nem por isso, menos importante no conjunto
da obra do diretor.
Aqui,
num primeiro momento, como mostra o letreiro final, o filme
existe apenas pelo simples prazer de contar uma história.
Porém, alguns anos mais tarde, o diretor disse numa
entrevista a uma revista italiana que a trilogia é
a sua obra mais ideológica, pois celebra a vida de
forma física e carnal, mostrando os desejos humanos
mais primitivos e a alegria de transgredir limites impostos
pela religião e a sociedade.
"Os
contos de Canterbury" adaptam oito dos 24 textos originais,
sendo reinterpretados por Pasolini ao seu modo. Um dos segmentos,
por exemplo, de poucas páginas em Chaucer transforma-se
numa homenagem a Charles Chaplin e à comédia
muda americana. Já as frequentes cenas de nudez frontal
e sexo -- comuns também nos outros filmes da trilogia
-- refletem a idéia da celebração da
vida proposta pelo diretor.
Se Chaucer
é a base para o roteiro, os pintores holandeses do
século 16, como Pieter Brueghel e Hieronymus Bosch,
foram uma clara inspiração quando Pasolini criou
as figuras dos personagens e o visual do filme -- especialmente
na representação do inferno.
Salò
o le 120 Giornate di Sodoma (1975)
Em
1975 o mestre italiano costura com ardor sua poesia do caos.
O fascismo explorado em todas as vertentes possíveis.
A exigência total da conformidade dos comportamentos
aos desejos dos dominadores, a censura, a denúncia
e o colaboracionismo. Estamos diante de uma das obras mais
perturbadoras da História da cinematografia mundial.
Pasolini não mede consequências, filma de modo
cru, sem fazer nenhuma concessão; 16 jovens são
aprisionados por fascistas e passam a ser usados como fonte
de prazer, masoquismo e morte.
Na
província italiana de Saló, no norte da Itália,
que estava controlada pelos nazistas em 1941, quatro altos
dignatários reúnem exemplares perfeitos de jovens
e levam-nos para um palácio perto de Marzabotto, juntamente
com guardas, criados e garanhões. Além deles,
há quatro mulheres de meia-idade - três delas
contam histórias provocantes enquanto a quarta os acompanha
ao piano. A história passa-se enquanto relatam as histórias
de Dante e de Sade - o Círculo das Manias, o Círculo
da Merda e o Círculo do Sangue. Depois disso, os jovens
são executados enquanto cada libertino toma o seu lugar
como voyer. A obra-prima mais polêmica da história
do cinema.
+
cinema
Susana
Kampff Lages
especial para a Folha
Massimo
Fusillo é helenista de formação e professor
de literatura comparada da Università dell'Aquila (Itália).
Estudioso não apenas da literatura antiga, mas também
de temas que envolvem a permanência da Antiguidade clássica
na literatura e na arte da modernidade, o trabalho de Fusillo
se destaca pela ampla erudição e pela extraordinária
capacidade de reler em chave contemporânea temas e textos
antigos.
Vai nesse
sentido atualizador a leitura que ele faz do cinema de Pier
Paolo Pasolini (1922-75). Para Fusillo, Pasolini constrói
na sua filmografia uma "Grécia bárbara",
despojada de toda frieza racionalista ou contenção
neoclássica - uma Grécia mítica, mágica,
passional.
Pode-se
dizer que Pasolini busca, por uma metamorfose do texto literário,
refazer as próprias origens narrativas do cinema? Seria
a busca das origens um/o grande tema pasoliniano?
Mesmo
levando em conta o caráter poliédrico de temas
e de linguagens por ele utilizados, a busca das origens é
certamente um grande tema de Pasolini, sobretudo se se entende
por origem uma sacralidade e uma poeticidade inerente às
próprias coisas. Nos filmes sobre o mito, Pasolini
procura remontar às origens rituais da tragédia
grega, antes da intervenção racionalista do
logos.
Qual seria o papel dos dialetos no processo
criativo pasoliniano? Sinalizaria o seu uso dos dialetos um
desejo de retorno à origem ou, antes, um desejo utópico?
Há
um fio condutor que une o dialeto friulano [da região
de Friuli] dos primeiros poemas, o caráter romanesco
dos romances e a assim chamada conversão ao cinema
-todas opções criativas que pretendem superar
o convencionalismo asfixiante da linguagem, encontrar uma
expressividade corpórea, imediata. Por trás
disso, há mitologias decadentes, mas há também
a influência da antropologia: seja pelo interesse pelas
culturas locais, seja pela exaltação das linguagens
não-verbais (gesto, música, rito).
O sr. escreveu um livro inteiro sobre
"A Grécia segundo Pasolini". Qual seria a
definição mais sintética dessa tão
singular topografia pasoliniana?
Usei a
fórmula "Grécia bárbara", o
que soa contraditório, mas que traz a idéia
de uma classicidade nada olímpica (Pasolini dizia que
"barbárie" era a palavra que mais amava no
mundo). A Grécia para ele é metáfora
de uma antiquíssima civilização agrária,
cíclica e não linear como a cristã; a
própria cultura camponesa que ele defendia na Itália
contra a modernização selvagem do neocapitalismo.
Há
um fundo comum entre o gesto da apropriação
pasoliniana da tradição literária grega
(por exemplo, na sua trilogia "clássica":
"Medéia", "Édipo Rei" e
a "Orestíada") e de temas bíblicos
(em "O Evangelho segundo São Mateus")? Ou
haverá sobretudo diferenças?
Não
há grandes diferenças. O fundo comum é,
como disse, a cultura camponesa. Não por acaso o "Evangelho"
foi rodado num lugar de memória cultural extraordinário
como a região das pedras de Matera, lugar-símbolo
de uma cultura extremamente arcaica, mágico-sacral,
na Lucânia (sul da Itália), um lugar pouco integrado
ao sistema nacional italiano que foi objeto de estudo do nosso
famoso antropólogo Ernesto de Martino.
O
sr. escreveu um livro de grande erudição sobre
o tema do duplo na literatura ocidental. Quais seriam os duplos
de Pasolini nas tradições italiana e européia?
Na tradição
literária italiana, primeiramente Dante, tanto como
símbolo quanto como modelo de uma expressividade dissonante,
"plurilinguística". Na "Divina Mímese",
obra póstuma publicada logo após a sua morte,
Dante é realmente um duplo de Pasolini. E Giovanni
Pascoli, a quem dedicou sua tese de graduação
e com quem comunga a forte tendência ao retorno e à
simbiose com o corpo materno. Duplo especular pode ser considerado
D'Annunzio, poeta que Pasolini detestava, mas com quem tem
aspectos em comum, entre eles o fato de saber brincar com
a própria figura pública. Na tradição
européia, o poeta preferido foi sempre Rimbaud, por
seu caráter visionário, mas há afinidades
com outros poetas: Mandelstam ou Pound, por exemplo. Menos
previsível, mas muito incisiva, foi a relação
com Proust, sobretudo pelo aspecto infinitamente desejável
e a desesperada "inaferrabilidade" do real -tema
intimamente ligado, no nível da forma, a uma certa
infinitude estrutural. Não por acaso o último
Pasolini privilegia a forma do projeto: em "Notas para
uma Orestéia Africana", "Notas para um Filme
sobre a Índia", nos poemas das últimas
coletâneas, no romance inacabado "Petróleo",
pensado como obra em fragmentos.
Qual
a ligação de Pasolini com o decadentismo literário?
Ligação
profunda: exotismo, barbárie, imediaticidade corpórea,
poética pictórica -núcleos temáticos
de origem decadentista. Ainda que o decadentismo de Pasolini
seja sempre relido pelo filtro da antropologia e da psicanálise,
modelos racionais de leitura do real que, como o marxismo,
jamais foram abandonados, apesar de crises recorrentes. A
barbárie torna-se em Pasolini uma forma de vida, um
modelo de mundo, e não uma evasão irracionalista.
Pasolini
foi definido pela crítica um herético: dissidente,
rebelde, iconoclasta. Marxista inspirado pelo cristianismo
primitivo, homossexual declarado numa época "politicamente
incorreta". Hoje o que se pode dizer desta carga contraditória?
Não o terá reabsorvido o cânone?
Talvez,
em parte, sim. A Itália, país que o perseguiu
por décadas, hoje tende a santificá-lo. Muito
de seu sucesso internacional também se deve a uma cultura
do "politicamente correto", algo que lhe era muito
estranho. Hoje ninguém mais se escandalizará
com a coexistência de marxismo e paixão pelo
Evangelho, como ocorreu na época, sobretudo dentro
da esquerda francesa. Quanto à homossexualidade, haveria
muitíssimo a dizer: Pasolini tornou-se homossexual
declarado não por opção, mas devido a
um processo por corrupção de menores que o exilou
da sua região, o Friuli, e do Partido Comunista. Hoje,
a quase 30 anos de sua morte, pode-se dizer que o fenômeno
tantas vezes por ele denunciado nas vanguardas, isto é,
a tendência de a mídia absorver as transgressões,
o envolveu também (e isso era inevitável). Mas
o sucesso da sua obra em esferas culturais tão distantes
testemunha também, creio, a sua capacidade de transfigurar
a carga de contradições: de transformar o "escândalo
de contradizer-me" numa fonte inesgotável de criatividade.
Pier
Paolo Pasolini BIOGRAPHY
Italian director,
screen writer, essayist, poet, critic and novelist, was murdered
violently in 1975. Pasolini is best known outside Italy for
his films, many of which were based on literary sources -
The Gospel According to Saint Matthew, The Decameron, The
Canterbury Tales. Pasolini referred himself as a 'Catholic
Marxist' and often used shocking juxtapositions of imagery
to expose the vapidity of values in modern society. His friend,
the writer Alberto Moravia, considered him "the major
Italian poet" of the second half of the 20th centrury.
Pier Paolo
Pasolini
"In neorealistic
film, day-to-day reality is seen from crepuscular, intimistic,
credulous, and above all naturalistic point of view... In
neorealism, things are described with a certain detachment,
with human warmth, mixed with irony - characteristics which
I do not have. Compared with neorealism, I think I have introduced
a certain realism, but it would be hard to define it exactly."
(from Pasolini on Pasolini by Oswald Stack, 1970)
Pier Paolo Pasolini
was born in Bologna, traditionally the most left-wing of Italian
cities. Pasolini's father was a non-commissioned officer,
moving from one garrison to another. His family originated
from Fruili, a region in the North-Eastern part of Italy where
a local language, Friulano, Rhaeto-Romanic dialect, dominated.
Later Pasolini adopted as his way of expression the crude
language of the Roman suburbs. Most of his childhood Pasolini
spent at Casarsa della Delizia, his mother's birthplace northeast
of Venice. During this period he became deeply involved with
the dialect of the region.
I was twenty, not
even - eighteen,
nineteen... and I had been alive for a century,
a whole lifetime
consumed by the pain of the fact
that I would never be able to give my love
if not to my hand, or to the grass of ditches
or maybe to the earth of an unguarded tomb...
Twenty and, with its human history and its cycle
of poetry, a life had ended.
(from 'A Desperate Vitality', trans. by Pasquale Verdecchio)
In 1937 Pasolini
returned to his native city and studied art history and literature
at the University of Bologna. He published articles in Architrave,
the politico-literary monthly of the students, and began writing
poems in Friulian. Pasolini's first collection of poems, POESIA
A CASARSA, which he printed at his own expense, appeared in
1942. It reflected his intense love for 'maternal tongue',
Friulian landscape, and its peasants. The poems also showed
his knowledge of the poetry of Giovanni Pascoli, on whom he
later wrote his thesis, and Eugenio Montale. Pasolini's early
Italian poems, L'USIGNOLO DELLA CHIESA CATTOLICA, date from
this period but appeared in 1958.
Pasolini joined
the Communist Party as a young man - in his works he often
explored ideological problems, but his relationship with Communism
was questioning - like later the attitude towards him by his
party members. The mutual schism led to his expelling from
the party for alleged homosexuality. However, Pasolini regarded
himself as a Communist to the end of his life.
From 1943 to 1949
Pasolini worked as a teacher in almost total obscurity. His
essay on Pascoli and Montale, showing his skills in close
textual analysis, appeared in 1947 in the Bolognese review
Convivum. An essay on Giuseppe Ungaretti, written in the years
1958-51, was later included in PASSIONE E IDEOLOGIA (1960).
In 1949 Pasolini moved with his mother to Rome, where he wrote
poems and novels of slum life. The first two parts of a projected
trilogy, RAGAZZI DI VITA (1955, The Ragazzi), composed in
a mixture of Italian and Roman dialect, and UNA VITA VIOLENTA
(1959, A Violent Life), established Pasolini's reputation
as a major writer. In these works he depicted with neorealistic
approach subproletarian life and the awakening of social awareness.
Both novels were translated in the 1960s into English. Tommaso,
the protagomist in A Violent Life, is a homosexual, who with
his friends lives in a world without hope. After being released
from a prison, he gets an opportunity to change his purposeless
existence. "But this novel is a great deal more than
the sum of its political ideas. It is not devitalized by or
dependent on Marxist philosophy. Tommaso's story has its own
profound and cumulative power; his world boils with life created
by Pasolini's relentless use of dialogue and vivid detail."
(Anne Rice in The New York Times, November 3, 1985)
During his career
Pasolini published nearly ten collections of poems. Many critics,
such as Alberto Moravia, considered him one of the most important
contemporary poets in Italy, who gave voice to the post-war
generation. With Moravia Pasolini travelled in the 1960s in
Africa, making preparations for a film about 'black Oedipus',
but the idea was never realized. He also built with Moravia
a house in Sabaudia. According to Moravia, Pasolini honestly
believed that the lowest proletariat would save the world
with all of its freshness, uncorruptness, and originality.
"Pasolini was, in his own way, a follower of Rousseau,"
Moravia wrote in Vita di Moravia (1990).
In LE CENERI DI
GRAMSCI (1957) Pasolini returned to ideological debate. He
took as his starting point the theories Antonio Gramsci (1891-1937),
a political leader and the cofounder of the Italian Communist
Party, who spent in fascist prisons the last ten years of
his life. Pasolini accepted the rational arguments of Gramsci,
but was tormented by his attraction and revulsion for the
world he observed.
In addition to
writing scripts, Pasolini worked in the 1950s as an actor.
In 1961 Pasolini made his debut as a director. His first film,
ACCATONE, a re-working of his own novel A Violent Life, centered
on the life of a pimp in Rome. Franco Citti, the then amateur
actor, played the eponymous hero. The theme of prostitution
continued in Pasolini's homage to Anna Magnani, MAMMA ROMA
(1962), which portrayed Rome's underworld realistically. Magnani
played a prostitute who has to go back on her profession.
International fame
Pasolini gained in the mid-1960s. IL VANGELO SECONDO MATTEO
(1964), a straightforward re-telling of the New Testament
story, was based on words and scenes from St Matthew's Gospel.
The Catholic Church helped to finance the film and it received
the Special Jurt Prize at the Venice Film Festival. Two years
before Pasolini had been accused of blasphemy over his satirical
sketch in RoGoPaG (1963), a film directed by Rosselini, Godard,
Pasolini and Gregoretti. However, Pasolini once said: "For
years I thought that an addressee for my 'confessions' and
'testimony' existed. Only now do I realize that he does not
exist." IL DECAMERONE (1971), THE CANTEBURY TALES (1973)
and IL FIORE DELLE MILLE E UNA NOTTE (1973) were based on
medieval tales and celebrated the world of simpe joys and
sexuality. EDIPE RE (1967) was an adaptation of an ancient
text of Sophocles. TEOREMA (1968) was a dissection of the
bourgeois family. Using non-professional actors with professionals,
Pasolini attempted to combine realism with revolutionary concepts,
sex, violence, and sadism. With the gay liberation movement
the community of homosexual novelists grew internationally,
and along with Pasolini from it emerged such writers as Christopher
Bram, James Purdy, Allan Hollinghurst, José Lezema
Lima, Reinaldo Arenas, and Yukio Mishima.
In the 1960s Pasolini's
interest in language drew him to semiotics, although his concern
with dialect marked his work from the first collections of
poems. One of these early influences was the modern novelist
Carlo Emilio Gadda, whose experimental novel That Awful Mess
on Via Merulana, written in a mixture of Italian, Roman, Venetian,
and Neopolitan dialects, appeared in a Florentine review 1946.
Pasolini has presented
his approach to cinema in a number of essays. His opposition
to the liberalization of abortion law and criticism of the
radical students made him unpopular on the left. From PORCILE
(1969) Pasolini's films became increasingly controversial.
His last film, SALÒ O LE 120 GIORNATE DI SODOMA, set
in the last years of WW II in Italy, linked fascism and sadism.
The film was banned virtually everywhere.
Pasolini's creative
productivity did not stop in films. He wrote several tragedies
in verse and published in 1971 a new collection of poetry,
TRASUMANAR E ORGANIZZAR. In 1972 his critical writings were
collected and published under the title EMPIRISMO ERETICO
(Heretical Empiricism). He also contributed to the Milanese
newspaper Corriere della sera. On morning of 2 November, 1975,
his body was discovered on waste ground near seaside resort
of Ostia. A young male prostitute was tried and convicted
for the murder in 1976. Pasolini's massive unfinished novel,
PETROLIO, was published in 1992.
Fontes:
Luiz Zanin Oricchio, Luiz Carlos Merten - O Estado de S. Paulo;
Susana Kampff Lages especial para a Folha de São Paulo;
http://www.pierpaolopasolini.com/bio.htm; http://www.italiaoggi.com.br/not09-1202/ital_not20021015b.htm;
http://www.opensubtitles.org/pb/subtitles/3694372/the-big-night-pb;
http://veja.abril.com.br/261103/p_177.html; http://www.unincor.br/recorte/artigos/edicao1/1artigomarializete.htM;
G1; Reuters